— E você é bom de treta — retribuí a gentileza.

A questão delicada é que, como Agualusa seria uma novidade de última hora, eu deveria convencer um dos mais elegantes autores da língua portuguesa — premiado pelo diário britânico The Independent por O Vendedor de ados — a vir de Lisboa para Porto Alegre de um dia para o outro. Estávamos na quarta, o evento seria na sexta.

Comecei a abordagem despretensiosamente:

— Oi, meu amigo, tudo bem? Uma sondagem: onde você estará na sexta?

Ele me respondeu que estaria fazendo uma colonoscopia.

Segui a deixa:

— Tudo é pretexto para adiar esse exame. Quer vir para POA?

Ele riu, alegou que não poderia adiar, que achara uma miraculosa brecha na agenda, que tinha protelado o exame mais de uma vez.

Acreditei que eu havia perdido a batalha. Mas insisti:

— Já tomou laxante?

Avisou que não.

— Então, aproveite a chance! Troque uma viagem por dentro por uma mais tranquila por fora.

Senti que ele vacilou. Investi com ânimo:

— Será lindo. Eu irei entrevistá-lo. Nem precisará de anestesia.

Ele ou a compactuar com a ideia:

— Pelo menos, você sabe como iniciar a conversa.

Eu metaforizei:

O destino é o capricho do acaso.

Agualusa emendou:

— Se bem que não seria eu a viajar por dentro. Eu seria o dentro.

Daí percebi que o conquistei:

— Verdade. Você é o dentro disfarçado de fora. Como sempre.

Foi quando ele decidiu:

— Ok, adiarei a colonoscopia.

Agradeci oceanicamente.

Em nosso diálogo no palco, ele me assustou um tanto. Não sei se foi para se vingar.

O escriba de boina e cavanhaque me descreveu o improvável.

Ele contou que estava devaneando com Mia Couto, seu cúmplice de escrita, e, de repente, surgiu a dúvida:

— Quantos romances você já publicou? — perguntou Mia.

Não se lembrava. Por preguiça, ou pressa (a preguiça é uma pressa para nenhum lugar), ele resolveu consultar o ChatGPT, que esclareceu:

“São 16 livros. Aqui está a lista”.

José Eduardo Agualusa analisou a relação e não reconheceu um dos títulos.

ChatGPT, não escrevi este livro: O Mapa das Fissuras. Posso estar ficando louco, mas até procurei em minha biblioteca ou nas livrarias: simplesmente não existe!

O aplicativo tratou de se corrigir:

“Peço mil desculpas, tem toda a razão, esse livro não está nas livrarias porque você ainda não escreveu, vai escrever. Portanto, como ainda não foi escrito, ainda não está disponível”.

Agualusa está atualmente escrevendo O Mapa das Fissuras. O primeiro caso em que a inteligência artificial encomendou um livro à inteligência humana — e não o contrário.

O futuro já aconteceu.

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